Posse do Presidente Benedito Cabral

A Academia Paulistana Maçônica de Letras realizou sessão solene de posse do Presidente Benedito Cabral, no dia 16 de julho, às 10 horas, na Avenida Paulista, 2001 - 13º andar, em São Paulo.
Almoço de Confraternização no Restaurante Picchi, Rua Oscar Freire, 533.

Posse Novos Acadêmicos

Álbum de Fotos do evento em comemoração aos 17 anos de fundação da Academia Paulistana Maçônica de Letras e da posse dos acadêmicos Luiz Flávio Borges D'Urso e José Maria Dias Neto.
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quarta-feira, 1 de julho de 2009

TANGO: UMA FILOSOFIA DO ABSURDO?

João Ardito




Uma viagem, ainda que de apenas quatro dias, à decadente Buenos Aires, recentemente feita me obrigou a fazer uma série de comparações e de reflexões. A Buenos Aires de 2.011 é muito diversa daquela que visitei em 1.979, assim como São Paulo, a metrópole de mil tentáculos, a cada amanhecer, se apresenta diferente do anterior. A capital argentina ainda apresenta prédios antigos, públicos e particulares, bem cuidados, com fachadas que mantêm o projeto original, especialmente no centro. O povo se tornou mal-educado ou, por outro lado, sempre foi e nós, brasileiros, com atávico sentimento de inferioridade, não percebíamos; as ruas estão sujas e o lixo, à noite, se torna abundante, em virtude dos catadores que, lá como cá, remexem os sacos plásticos procurando utilidades difíceis de serem achadas ou, o que é pior, restos de comida. O ar de cidade europeia que portenhos e buenairenses tinham orgulho de afirmar, aos meus olhos, não passa de uma comparação atrevida e a Buenos Aires- de hoje está muito distante da Paris de sempre. De qualquer modo, o poder que a terra natal tem sobre seus habitantes é algo que as palavras, quaisquer palavras, não conseguem, nem de perto, definir. Hoje tenho certeza que é São Paulo que me aninha em seu imenso coração.




As pessoas, mudam, envelhecem e se tornam mais amargas. Aquilo que era importante há 40 anos hoje é encarado de outra maneira, mais realista ou sem a sensibilidade que à juventude daqueles tempos, dentro de seus padrões estéticos, era permitido sentir. Venho de outro padrão de cidade, onde o tempo parece fluir mais celeremente, numa falsa ilusão de rapidez, que traz consigo uma sensação de alienação, sem a qual a vida se tornaria quase insuportável. São Paulo a capital essencialmente cosmopolita, onde a miscigenação é, acima de uma constante, uma verdadeira obrigação. São Paulo, dos mil sotaques, das mil cores, dos mil sabores, dos mil odores e de tantos outros amores.




Aprendemos, ao saborear o cancioneiro popular de todas as partes do mundo, que certo gênero musical está intimamente ligado a determinada cidade ou mesmo país. Tais músicas são elementos identificadores do, chamemos assim, DNA do local que se estuda. Desse modo, o rufar dos tambores e tamboris da Mangueira, mesmo ao longe, é sinal de brasilidade. A junção de temas regionais à música clássica, feita por Villa Lobos, é outro sinal de brasilidade. Os sambas satíricos e de grande crítica social de Adoniran Barbosa estão intimamente ligados a São Paulo; assim como a música de Paulo Vanzolini, compositor de Ronda e de tantas outras canções que retratam o cotidiano paulistano – quem já ouviu sabe do lirismo que está intrínseco à canção chamada, simplesmente, “Praça Clóvis”. Noel Rosa e sua Vila Isabel, Zé Kéti, Silas de Oliveira (o grande compositor da Escola de Samba Império Serrano), Cartola, Nélson Cavaquinho, são compositores tipicamente cariocas e suas músicas, naturalmente, retratam o modo de ser e de pensar do povo do Rio de Janeiro. As demais regiões do Brasil também têm suas características próprias.




Nessa mesma linha de raciocínio é impossível falar da Argentina sem mencionar o tango. Toda essa divagação começou em decorrência da visita feita à capital argentina, acima mencionada, nos primeiros dias desse ano. Assim, viajei com a minha esposa, meu filho e sua namorada. Para os três era a primeira visita realizada àquele país e todos estavam sequiosos para assistir a um “show” de tango. Desse modo, depois de algumas consultas, pois não tínhamos ingressos comprados com antecedência, fomos ao espetáculo chamado “Tango Porteño”. Não posso deixar de reconhecer que foi uma noite interessante, principalmente pela reação de meus acompanhantes. Infelizmente, foi uma apresentação mais próxima a “Hollywood” do que a de um cabaré portenho. Bailarinos excelentes, uma orquestra típica muito boa, mas com poucos tangos cantados – “Bajofonfo”; “Por uma cabeza”; “Malena” e o indefectível ”El dia que me quieras”, num dueto nada além de razoável. Tanto é assim que não me lembro do nome dos intérpretes.




Impossível não fazer uma viagem regressiva à minha infância quando meu pai levava a família, sempre que possível, às apresentações de companhias estrangeiras que vinham ao Brasil, nos anos 50, sejam elas européias ou latino americanas. Dentre vários espetáculos me recordo, especialmente, da apresentação de Julio Sosa, “El varon del tango”. Os próprios argentinos denominavam de “típica” a pequena orquestra destinada a acompanhar os intérpretes que se dedicavam a esse ritmo musical. Sosa, homem de média estatura, moreno, muito aproximado ao homem comum, se agigantava quando adentrava ao palco, dominando-o completamente, com sua aura especial. Era dono de voz indiscutivelmente nascida para cantar tango. Fiquei boquiaberto e extasiado, como se estivesse contaminado pela emoção que envolvia o local. Não precisava ser um experto no assunto para perceber que aquele espetáculo foi particularmente especial. Hoje posso afirmar que foi inesquecível, pelo menos para aquele menino que sempre foi fascinado pela música. Tudo parecia se encaminhar para um clímax que todos esperavam e, de modo claro, a plateia ansiava pela execução de “La cumparsita”, que sempre foi o carro chefe de quase todos os grandes cantores de tango e que era chamada, por muitos, de “lo tango de los machos”. Por fim, a orquestra tocou os primeiros acordes, plenamente reconhecidos por todos os presentes, do tradicional tango. Contudo, as palavras conhecidíssimas foram substituídas pela recitação de um poema chamado “Porque canto así” de Celedonio Flores, obra de intenso drama e talhada, perfeitamente, ao tango. Sosa e seus músicos foram obrigados a bisar por três ou quatro vezes, sempre com mais empenho e denodo e, naquela noite, na plateia do velho “Cine Piratininga” (um dos maiores cinemas do mundo e hoje transformado num imenso e insensível estacionamento), adaptado para a apresentação, poucos foram os que não choraram. Nunca mais ouvi essa versão, até que em 06 de janeiro passado, em plena “Calle Florida”, na famosíssima livraria “El Atheneo” (ainda grande centro cultural argentino), vasculhando as bancadas de CDs por fim chegou às minhas mãos uma coletânea desse cantor cuja faixa de abertura era exatamente essa que tantas recordações provocou. Desnecessário dizer que a comprei com rapidez surpreendente.




Meu filho e minha esposa respeitam muito meus gostos musicais e nunca se opuseram a que eu escutasse esse tipo de música em casa. Ficaram encantados quando viram a interpretação de “AL Pacino” dançando “Por uma cabeza”, no filme “Perfume de Mulher”. Depois de muitas explicações acreditaram quando lhes disse que o filme original é italiano e chamado “Profumo di Donna” e que “Victtorio Gasmann”, no papel do irascível coronel cego, estava insuperável. Resultado dessa proveitosa discussão foi que nos matriculamos numa escola de dança de salão e, por incrível que pareça, aprendemos a dançar tango (à época ele contava com menos de 20 anos). É delicioso ter como parceira nessa dança a mulher amada. Dança sensual por excelência, um eterno convite ao amor carnal. Por outro lado, como paixão juvenil, meu filho fez, em algumas ocasiões, perguntas oportunas a respeito das letras e, mais tarde, explicando para a sua jovem namorada comentou que, na maioria das vezes, tais letras estavam próximas do absurdo. E esse foi o mote final para que eu escrevesse essas linhas que, certamente, terão raros leitores.




De início até achei certa graça naquela afirmação fruto dos arroubos da juventude, mas, na viagem de volta, ainda no avião, pus-me a pensar no assunto e minha memória foi tomada de assalto por um convite que tive para participar de competição literária, elaborada pelo setor cultural do “Memorial da América Latina” que tinha um título por demais convidativo – “Tango: uma filosofia do absurdo”? Na ocasião, meu tempo e dos demais confrades estava ocupado pela elaboração da “Antologia sobre os 450 anos da fundação de São Paulo” e, desse modo, deixei de lado aquele projeto que me fascinava de maneira acentuada. Um projeto que cativa, quando abandonado, permanece nos recônditos da alma e, como os fantasmas das histórias infantis, algumas vezes insistem em nos “assustar”. Hoje resolvi enfrentá-lo sem medo, pois escrever, mesmo que modestamente, sobre a música típica de outro país é, sem sombra de dúvida, um grande atrevimento.




Antes de falarmos em absurdo e em filosofia devemos nos ater a própria origem do tango como música e, sobretudo, como movimento cultural, proveniente do povo mais humilde. É inquestionável que o seu berço foi o das classes mais pobres e humildes de Buenos Aires. Assim, segundo Carlos Alberto Cosentino (Letras de Tango; Andrómeda, 2006, Buenos Aires), o tango surgiu no final do século XIX, quando a imigração e o progresso convertiam Buenos Aires numa grande urbe. De início era expressão cultural essencialmente instrumental, executada por violão, flauta e violino. A grande novidade é que já no berço o tango escandalizava porque os casais se entrelaçam para dançar ou, em palavras portenhas “las parejas bailabam enlazadas”. Corpos como que enrolados, pernas se entrecortando e se roçando sensualmente. A vida sabe o que faz e não se consegue explicar o inexplicável e, num exemplo típico, o bandoneão, instrumento que deu o som peculiar ao tango, nasceu na Alemanha. Em que contexto musical o mesmo era usado na Europa do século XIX, talvez somente os estudiosos da música sejam capazes de entender e justificar. Hoje pensar nesse instrumento de fole é lembrar-se da Argentina. A tríade Argentina-bandoneão-tango é perfeitamente identificada em qualquer lugar do mundo.




Nos primeiros anos de vida, o tango foi executado e bailado nos prostíbulos, portanto, suas primeiras letras tiveram cunho evidentemente burlesco. Desse modo, o tango já nasceu maldito, desdenhado, desprezado, colocado como expressão musical de segunda linha. Pode-se imaginar o escândalo que tal gênero musical deveria provocou na sociedade do final dos anos 1800 numa Buenos Aires que se apresentava como cidade europeia. Talvez, a par da sua musicalidade e da sua inquestionável sensualidade, tenha sido esse preconceito que marginalizou o tango e essa marginalidade lhe deu a mística e a mítica que o envolve até hoje. Nascido nos prostíbulos, dançado e apreciado por gentes postas à parte da sociedade é natural que nas suas letras originais uma gama de palavras fosse criada, transformando-se na famosíssima gíria portenha. Esse linguajar típico tem um nome – “lunfardo” – e, originariamente, era um código carcerário usado pelos presos para se comunicar entre si evitando, assim, que os guardas entendessem aquilo que conversavam ou os novos golpes que tramavam. Mais tarde, com a chegada dos imigrantes, especialmente italianos, novas palavras foram criadas, numa mistura de espanhol e italiano. Era, em suma, a forma de comunicação dos delinqüentes, em especial dos ladrões e dos proxenetas. Coube a Pascual Contursi, na segunda metade do século XX, libertá-lo desse estigma, com a composição de “Mi noche triste”. Contudo, mesmo esse tango-canção começa com uma palavra que é gíria absoluta e pura: “percanta”. Tal palavra refere-se à mulher com a qual se mantém relações sexuais em concubinato e deriva de percal, tecido com o qual eram feitas as roupas íntimas das mulheres! Pode-se, portanto, falar que existe um verdadeiro idioma tangueiro. Assim é o tango: às vezes debochado, outras tantas contestador, mas, sempre, encantador, sensual e onírico.




Tango é magia, mas, principalmente, mistério, tanto quanto a origem do seu próprio nome. Tudo que é bom, exótico deve ser revestido de uma aura peculiar, única, quase incompreensível que, sobretudo, fascina cativa, prende. Assim, a palavra tango é encontrada na cultura africana, hispânica e no colonialismo argentino. Seja qual for a sua origem, essa palavra tem um significado maravilhoso: apalpar, tocar, acercar-se. O que se pode esperar de uma música, de um ritmo musical, que incita a tocar e a apalpar? Dançar, tocando e apalpando. E esse tocar e apalpar não cabe somente ao homem, pois a mulher, no tango, é muito mais do que par, pois é, acima de tudo, partícipe. Ao deixar-se conduzir com sensualidade, ela seduz cativa e arrebata. Desde sempre a dança tem forte conotação sensual, basta recordar a dança de Salomé que seduziu Herodes com a revelação de seu corpo, paulatinamente, a cada véu que caía e que custou a cabeça de João Batista.




Aceitando que a filosofia é um conjunto de concepções, a expressão popular, por intermédio da música, configura-se numa verdadeira filosofia. As questões fundamentais que envolvem a psique humana são tratadas em quase todas as formas de arte popular. O cotidiano do homem comum, avesso aos grandes questionamentos filosóficos, com maior ou menor profundidade é abordado por todas as concepções musicais ditas populares. O termo popular, muitas vezes usado de forma pejorativa, deve ser avaliado com isenção de ânimo. Muitas pessoas, as chamadas elites, ao ouvir essa expressão torcem o nariz, mas se esquecem que as mesmas fazem parte do povo de determinado local. Ora, elite, populacho, governantes todos são povo. Fazer uma distinção desse porte é discriminação. Seria o mesmo que dizer que o abastado não sofre as desilusões do amor, não é alcançado pelas desditas da vida, não possa ter a mente conturbada. A reação aos sofrimentos pode ser diversa, mas sempre haverá alguma: dissimulada, às claras, violenta ou não.




O tango, do mesmo modo que o nosso samba soube bem abordar toda essa gama de sentimentos. De um modo geral, enquanto a grande maioria dos sambas é alegre, o tango traz em si o lado trágico da vida, como uma alma atormentada. Assim, pode-se dizer que todos os aspectos da vida, inclusive os menos transcendentais, encontraram nas músicas um verdadeiro espelho. O tango, obviamente, não escapa a essa regra. Amor e desamor; traição e fidelidade; amizade e inimizade; pureza e lama são tratados ora com ironia, ora com rancor; muitas vezes com lirismo, mas, sempre, com paixão, com ardor e com sinceridade. Há nesse tipo de música um “mènage a trois” perfeito: o som do bandoneão, do violino e do piano. O contraponto entre o fole do bandoneão e as cordas do violino é, muitas vezes, doloroso, pujante, delicioso. Sempre toca à alma. Contudo, haverá, sempre, alguém que falará que as letras desse tipo de música são ultrapassadas e que, usando a expressão utilizada por meu filho, são absurdas.




Neste texto, como premissa filosófica, ainda que modesta e carecedora de maiores estudos, defendo a inexistência do absurdo. Ora, como adjetivo, absurdo é o contrário à razão, ao senso comum e, como substantivo, absurdo é sinônimo de tolice, asneira ou, mesmo, disparate. Acima começamos a falar sobre sentimentos nobres do homem: amor, honra, fidelidade, amizade. Por mais que o mundo evolua, que as distâncias se encurtem que os valores morais e culturais das mais diversas sociedades se modifiquem, o mundo continuará a ser movido pelo amor. Amor filial, amor carnal e principalmente o amor transcendental, incondicional, é o mais nobre dos sentimentos humanos. O poeta Carlos Drumond de Andrade definiu o amor num de seus célebres poemas como “amar, verbo transitivo indireto”. Quem ama, no mais das vezes, não sabe explicar o porquê do amor. Ama e basta; assim direto e sem a necessidade de nenhum complemento. Quem precisa explicar seu amor, na realidade, não ama. A paixão, contudo, é passível de explicação. Desse modo, afirmar que este ou aquele comportamento, que esta ou aquela expressão popular beira o absurdo é subestimar o sentimento alheio. A modernidade tem o péssimo vezo de taxar de absurdo e ultrapassado tudo aquilo que não é qualificado como novo e diferente. Continuo mantendo a minha posição com relação a não existência do absurdo, mesmo que chacinas e guerras, ódios e provocações continuem a nos assolar diuturnamente.




Ao ser humano, a tragédia e os grandes dramas pessoais cativam muito mais que o riso fácil das comédias, mesmo que este esteja refletido na ironia das grandes críticas sociais. Na Grécia Antiga, berço da filosofia, nasceram as clássicas tragédias que comovem o mundo até hoje. Nelas havia um herói, por si mesmo trágico, lutando contra um fator transcendental que controla o fluxo dos acontecimentos. Tamanha é a força desse fator que é inexorável que se chegue a um final trágico, onde o herói sofre todas as conseqüências por querer controlar o poderoso destino (fado). A tragédia suscita terror e piedade nos leitores, ocasionando a chamada catarse, que é uma espécie de purificação através do sofrimento alheio. Segundo Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama. A catarse somente é conseguida passando da dita para a desdita, ou seja, da graça para a desgraça, ainda de acordo com os ensinamentos do mestre grego. Essa passagem, quase sempre fatal, não ocorre como obra do acaso, mas por intermédio de uma escolha ou ação mal feita e praticada pelo herói. As obras de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes são aquelas que têm as principais características das tragédias: a presença de um fator transcendental inexorável (destino e a ação dos deuses); uma clara unidade de salvação e aniquilamento, onde o herói, com a intenção de salvar-se, acaba sendo responsável pelo seu aniquilamento e o clima de tensão e indícios do final trágico. Édipo Rei, de Sófocles, talvez seja a tragédia grega mais lida e mais encenada, onde, de início, Édipo, o atormentado rei de Corinto, consultando o Oráculo de Delfos, recebe a trágica notícia de seu destino: matar o pai e casar-se com a mãe. Não há destino mais cruel, mais trágico. Cumpre lembrar que Laios, Rei de Tebas, o verdadeiro pai de Édipo, já havia recebido uma profecia maligna, a deque seria morto por seu próprio filho. Amedrontado, manda que um servo execute Édipo, perfurando os pés da criança com um prego e abandonando-o numa montanha. Este se compadece do menino e o abandona numa montanha, esperando que a morte chegue por inanição ou pelas garras de algum animal feroz e não por suas mãos. Um pastor o encontrou e dele se compadeceu, levando-o ao Rei Políbios de Corinto, que o criou como se filho seu fosse. Em grego, Édipo significa pé inflamado. Depois de matar Laios, sem saber numa escaramuça de estrada, Édipo chega Tebas e, depois de algum tempo é solicitado a decifrar o enigma da Esfinge. Ao fazê-lo recebe como prêmio a Rainha Jocasta, mulher de Laios e a sua verdadeira mãe. Ao descobrirem toda a trama, Jocasta se suicida e Édipo arranca os próprios olhos pra não mais visualizar o quanto o mundo era cruel e o havia maltratado.




Quase todas as principais letras de tango têm a tríade clássica da tragédia grega – um destino contra o qual não se pode lutar; um herói impotente em face dessa sina e o final trágico, sugerido desde o início. Sem me alongar muito farei uma análise, ainda que superficial, porque limitada à minha capacidade, de alguns desses sentimentos que permeiam o tango. O personagem do tango, masculino ou feminino, parece que nunca está em paz. Sem sofrimento um tango não seria perfeito, por mais rica que fosse a sua melodia, por mais poética que fosse a sua letra. Assim como ao samba cabe, quase sempre, a alegria, a irreverência, ao tango cabe a dor e a lamúria. É difícil que alguém consiga apontar um tango alegre, otimista ou aquele em que a derrota, seja ela qual for, não esteja perto, quase como um objetivo a ser alcançado. Acima de tudo, o tango, quase que por definição, é trágico. Caso fosse um teorema euclidiano, no seu estudo, ao encontrarmos a tragédia, poderíamos escrever: c.q.d. O tango está para a música, uma vez que se guardem as devidas proporções, assim como a tragédia grega estão para a literatura, uma vez que se o observe sob a ótica da tragédia.




No tango, o dueto entre o bandoneão e o violino traz, quase sempre, a amargura das vicissitudes, das desgraças, dos dramas que afligem a alma humana. Nas letras dos tangos, a par das lamúrias pela desilusão, pela traição, pela perda sentida ao extremo, há um sentimento que sobrepuja todos os demais – a busca, ou melhor, o clamor pela ética. A alma sofrida nada mais quer do que justiça, o que alcança expondo seu arrependimento ou até mesmo a raiva. Esses sentimentos caminham lado a lado com a ética. É claro que não pode haver justiça sem ética. Aí está um binômio – justiça e ética -que deveria permear a vida de todas as pessoas, contudo, estamos numa época em que levar vantagem, em tudo e contra todos, é um dos objetivos de um grande seguimento da sociedade desse início do século XXI. Esses foram os nobres sentimentos que teriam a capacidade de elevar a alma humana e que foram propostos por todos os filósofos da Antiga Grécia, como o mais alto objetivo a ser almejado pelo homem.




Ocorre que o homem simples, por mais das vezes inculto, não é dado a grandes elucubrações filosóficas, pois lhe falta o refinamento intelectual para tanto. Mas, a eterna sabedoria divina, lhe trouxe um mecanismo que tem sido lapidado através dos tempos, o inconsciente coletivo, maravilhosamente estudado por Jung. É ele que permite que uma conduta humana seja quase padronizada, isto é, os comportamentos éticos, com as variantes determinadas por usos e costumes de determinado local, são praticamente os mesmos. Todos sabem que matar e roubar são práticas condenáveis e o assassino e o ladrão sempre foram perseguidos e castigados. Há, contudo, sentimentos mais “nobres”, tais como a ética, a justiça, a honra, o amor materno-filial que estão incorporados à psique coletiva de todos. Então, coube ao homem simples, exatamente por não ter o preparo intelectual adequado, acima mencionado, expressar-se, com a mesma força dos grandes filósofos gregos, por intermédio da arte popular. Dentre todas as manifestações dessa arte, dita popular porque pertence ao povo (e povo somos todos nós), a música e o canto foram a que mais deram vazão aos sentimentos represados de todos aqueles que se sentiram oprimidos e feridos ou que, simplesmente, quiseram cantar a sua felicidade.




Na execução de qualquer tango o bandoneão ocupa papel de destaque. Assim como Carlos Gardel e seu grande parceiro Alfredo Lepera não eram argentinos, o bandoneão nasceu na Alemanha (Carlos Gardel é francês e seu inseparável parceiro, Alfredo Lepera, é santista). O bandoneão era instrumento de fole largamente utilizado nas canções folclóricas alemãs. Depois de atravessar o Atlântico, sabe-se lá pelas mãos de quem, encontrou sua verdadeira posição ao se casar com o tango. Alguém consegue imaginar um bom tango sem o acompanhamento de um bandoneão? O acordeão, por ser instrumento de fole, em algumas situações o substitui, mas sem a sua magnificência, sem a sua nobreza, pois lhe falta a capacidade de emitir agudos mais altos.




Nesse momento, cabe uma reflexão e tentar responde o porquê da escolha do tango, que nada tem a ver com as raízes brasileiras. Em primeiro lugar porque creio que nenhum outro tipo de manifestação popular é tão contundente em sua crítica, tão triste em sua essência. “Un folle que ressonga” (um fole que resmunga), como diz um velho tango, é algo, ao mesmo tempo, encantador e triste, de uma tristeza que às vezes chega a doer. Na minha origem não há nada que me aproxime à Argentina; pelo contrário, como quase todo brasileiro faço algumas restrições ao comportamento arrogante dos nossos vizinhos, em especial dos buenairenses. Em termos de música sou um eclético, pois transito do erudito e operístico ao popular com muita facilidade. Amo a música popular brasileira, bem como a italiana e escreveria várias laudas sobre as mesmas. Contudo, depois da viajem acima referida e da coleção comprada me veio à memória aquela noite de segunda-feira quando, quase um menino, fui introduzido ao tango e à sua tristeza e ousadia. Há certo ar de fatalidade no tango que me fascinou e dançá-lo, mesmo que amadoristicamente é um prazer muito grande. O mais provável, contudo, é que com o avançar da idade, uma grande nostalgia da infância e do contacto com os pais, já ausentes há vários anos, se mostra irresistível e até certo ponto dolorosa. O tango, como nosso samba-canção, é especialista em tratar das desditas amorosas, dos fracassos, das desventuras sociais dos mais fracos e, acima de tudo, é crítico e contundente. No mais das vezes, é irônico e malicioso. Assim, é difícil escapar da redundância e do lugar-comum e afirmar que gosto não se discute. Há aqueles que assim entendem, mas que, jocosamente, dizem que gosto não se discute, apenas se lamenta. Com isso quero dizer que há espaço para todos os ritmos musicais, desde que sejam fruto de verdadeira manifestação popular. Eu mesmo, quase que diariamente, faço esforço para não criticar e desdenhar do assim chamado sertanejo e do axé.




Isto posto, pretendo fazer um mergulho, essencialmente pessoal e sem preparo técnico musical, em alguns tangos que, através dos anos e limitados a experiências pessoais me cativaram. Neles estão refletidos sentimentos universais e que motivam a vida humana. Muitos deles são transcendentais, como molas propulsoras da existência: amor, ódio, despeito, traição, sensualidade, nostalgia e tristeza. Nesse breve apanhado, a par da letra e melodia, tento fazer uma curta reflexão sobre o sentimento posto em discussão. Não há, nessa reflexão, uma ordem cronológica ou de importância. Ela é, de certo modo, aleatória, embora comece pela “La cumparsita”, pelos motivos acima expostos.




“La cumparsita”, com música de Matos Rodriguez (nascido no Uruguai) e letra de Contursi e Maroni é tratada por muitos como “el tango de los machos” e aborda a frustração e a revolta do homem abandonado pela amante. Há, nessa poderosa música, a revolta pelo abandono, o despeito e a certeza de que o amor persiste no coração. O amante que não se consola, admite que tenha, ainda, muito amor pela mulher que partiu. Reclama ainda dos amigos que não o visitam mais e chamando-a de “percanta” pergunta o que a mesma fez do seu pobre coração. A fina ironia e o real tamanho do sofrimento apresentado pelo desventurado amante encontram-se na estrofe final quando afirma que o sol matutino nem mais bate em sua janela e que o cachorro que o acompanhava, não podendo suportar a tristeza do dono, também o abandonou. É próprio do ser humano sofrer a dor do abandono. Alguns se desesperam e chegam a colocar a própria vida em perigo; outros, depois de curto espaço de tempo, buscam novos amores e ilusões. É a lei da vida. Assim, qualquer pessoa pode ser preterida e sofrer a dor da injustiça, da desilusão. Ser abandonado pela amante, ainda que “percanta”, é algo até certo ponto natural, mas ser traído pelo “pierrito” ex fiel é demais. Muitos falarão em absurdo. Será?




Para ilustrar esse modesto trabalho coloco à disposição dos raros leitores algumas gravações dos tangos sobre os quais farei algumas considerações. Assim, com relação a “La cumparsita” coloco à audição de todos quatro gravações: a tradicionalmente orquestrada com a Orquestra de Juan D’Arenzio e um excepcional “diálogo” entre bandoneão, violino e piano; uma versão cantada com Raul Bordale; outra, com excepcional arranjo, em que Piazzola demonstra todo seu virtuosismo no bandoneão e a clássica de Julio Sosa e orquestra de Leopoldo Federico, com a declamação do poema “Porque canto asi” de Celedonio Flores, que tanto me cativou na longínqua noite dos anos cinquenta.




Minha infância, vivida na doce transição entre o Brás e a Mooca, me traz boas e inesquecíveis recordações. Era tradição, em muitas famílias italianas, comemorar o Dia de Reis com a celebração da fada “Bifanna” (Epifânia). Meu pai a cultivava e na noite do dia cinco me fazia colocar um pé de meia amarrado na cabeceira da cama ou na janela do meu quarto, com a promessa de que na manhã seguinte, dia seis, ou seja, Dia de Reis, a mesma estaria cheia de chocolates. Evidentemente, no dia seguinte eu me entupia dessa delícia. Talvez, seja por isso que me tornei chocólatra. No universo tangueiro, a obra “Noche de Reyes”, música de Pedro Maffia e letra de Jorge Curi, tem uma das letras mais cruel e dramática. É a história de uma tragédia, comum no cotidiano das grandes cidades. Nela o homem, honesto e trabalhador, ao retornar à sua casa, numa noite de reis, surpreende sua mulher, a quem se dedicara com extrema devoção, traindo-o com seu amigo mais querido. Cego de ciúmes e ódio, com o amor próprio ferido, sem compaixão, os mata. Algum tempo depois, a recordação do ato tresloucado lhe vem à mente, quando seu filho, fruto da união desventurada, numa noite de reis coloca, na janela, os sapatinhos à espera de um presente, sem saber que sua mãe, por “falsa e canalha”, seu pai matou. Absurdo ou mero retrato da realidade? A legítima defesa da honra ainda é algo que se encontra presente na alma humana. Não se pode esquecer que o tango é machista por excelência. No Brasil, grandes crimes passionais foram cometidos e o renomado criminalista Troncoso Peres, já falecido, famoso por suas atuações nos tribunais brasileiros, conseguiu várias absolvições usando, como tese, exatamente a legítima defesa da honra. Numa de suas últimas intervenções, já nos anos setenta, no Tribunal do Júri, em primeira instância, conseguiu a absolvição de “Doca” Street, assassino confesso de Ângela Diniz. Depois, graças à reação exacerbada e persistente de grupos feministas, tendo sido o primeiro julgamento anulado, o homicida foi condenado e cumpriu pena por vários anos. Teve sua vida profundamente modificada pelo acontecimento, pois de “playboy” passou a vendedor de carros na “Boca do Luxo” paulista. Neste trabalho, apresento uma gravação de Carlos Lombardi, exímio cantor brasileiro de tangos, reconhecido como tal na própria Buenos Aires.




Para alguns homens, a mulher prostituta tem uma atração particular, cuja razão de existência é de difícil explicação. Talvez seja pela vida desregrada que a mesma leva, pela necessidade masculina em proteger uma mulher submetida aos mais diversos infortúnios. Qual seja a razão é certo que a cortesã, sempre para alguns homens, fascina, atrai e, na maior parte das vezes, destrói. Quase todos nós conhecemos alguém ou ouvimos a história do jovem que foi arrastado aos piores pedaços que a vida pode reservar a um homem pelo amor a esse tipo de mulher, tratada pelos poetas e ensaístas como a mulher fatal. O tango “Esta noche me emborracho” retrata esse tipo de amor de um modo bastante peculiar e cruel. O mesmo tem letra e música de Enrique Santos Discépolo. O autor descreve a emoção e a decepção do homem que, dez anos depois de quase ser destruído pela amante, a vê, numa madrugada sair de um cabaré, só, como uma mariposa (“falena”) e escangalhada. Magra, acabada, com poucos panos a cobrir sua nudez. Compara a amada a um galo desplumado. Decepciona-se ao vê-la torta, magra e vestida como uma mulher vulgar (“pebeta”). Lembra-se que por ela abandonou tudo e todos, inclusive a própria mãe e, quando por ela abandonado, pôs-se de joelhos e transformou-se num mendigo. Nunca imaginou que a veria num “resquiciet in pace” tão decadente. Condena-se por ver que quase chegou ao suicídio por aquele objeto sem valor (“cachivase”). Assume que o tempo é cruel e humilha quem da vida faz o que bem quer. Mas, percebe que vê-la daquele jeito lhe fez muito mal, afasta-se correndo e não lhe resta alternativa a não ser a de embriagar-se. Por isso afirma: “esta noche me emborracho bien, me mamo bien mamao pa’ non pensar”! Nota-se a gíria: “me mamo bem mamado”, ainda muito usada no nosso cotidiano. Absurdo? Certamente não, pois são coisas da vida. A gravação clássica dessa obra é a de Carlos Gardel, sem bandoneão, acompanhado por dois violões. É a que eu apresento à apreciação de todos.




O tango, contudo, não é só tragédia, pois a ternura também faz parte do seu contexto. Creio que a maioria das pessoas tem grande amor pela sua cidade natal. Eu, particularmente, tenho um carinho enorme pela cidade de São Paulo e sou daqueles que a defende em qualquer circunstância. Temos, em nosso cancioneiro popular, grandes músicas que exaltam as qualidades dessa terra benfazeja, que está, sempre, de braços abertos e que, por isso, a todos recebe com o amor de uma mãe zelosa. São Paulo das mil línguas e de todos os sotaques. Antes de São Paulo se firmar como a grande metrópole do hemisfério sul, Buenos Aires ocupou esse lugar e o argentino natural dessa cidade, como não poderia deixar de acontecer, a cantou de várias formas. Logicamente, o tango não deixou de prestar seu tributo a essa cidade. Carlos Gardel fez a música e o santista Alfredo Le Pera a letra de “Mi Buenos Aires querido”. Nesse harmonioso tango, o buenairense, longe de casa, saudoso, ao mesmo tempo em que lamenta a ausência enaltece as qualidades de sua cidade. Afirma que ao voltar a vê-la suas penas desaparecerão. Lembra-se do momento em que viu, pela primeira vez, o amor juvenil, a menina luminosa sob o poste iluminado na rua em que nasceu. Esse mesmo poste foi a sentinela de suas primeiras promessas de amor. Ao chegar, ao longe, ouve o som de um bandoneão ou, quem sabe, apenas, imagina ouvi-lo. Nela, Buenos Aires, os anos voam, não haverá desenganos e nem desamparo. Ao voltar afirma que nunca mais a deixará e que nela morrerá. Sem dúvida é de um lirismo tocante. Cumpre lembrar que, mesmo com esse encantamento há o uso da gíria, na expressão “pebeta” (= “muchacha”). Para apreciar esse belo tango coloco a disposição uma gravação feita por Alberto Cabadas, bom cantor de tango que hoje vive, por ironia do destino, em São Paulo. Contudo, há uma grande versão orquestrada que tem o grande maestro Daniel Barenboim ao piano, executada com grande refinamento técnico.




Como uma elegia à tragédia, o tango não poderia deixar de tratar da morte, especialmente da perda da mulher amada. Os mais renomados escritores e poetas, de acordo com o contexto da ocasião, retrataram, com tintas dramáticas, esse drama da vida que pode atingir qualquer pessoa. Quantas vezes não ouvimos que o amante, distante ou perto, tinha como único consolo em face à morte inevitável, colher o último suspiro da mulher amada, apertando-a em seus braços. O tango “Donde estas corazon”, composto por Luiz Martinez Serrano (letra) e música de Augusto Berto e do próprio Serrano, retrata bem essa tragédia humana. Apresenta, numa letra simples, mas simbólica, a que ponto pode chegar a devoção de um homem pela mulher amada. É a história de um amor sem limites, pois o homem afirma que queria aquela mulher que morreu entre seus braços mais do que nada, mais do que à própria mãe. Depois dessa morte sai o desolado amante, pelo mundo lamentando-se e perguntando-se “onde estás coração” que não ouço seu palpitar. A dor era tanto que não podia mais chorar, pois as lágrimas secaram. Só lhe resta, então, a recordação dos carinhos recebidos e do amor vivido. Piegas? Talvez, mas são vários os exemplos daqueles que perderam o norte da vida depois da morte da mulher amada. A versão que apresento é a cantada, mais uma vez, por Carlos Lombardi, o cantor que, segundo meu pai, entortava a boca para cantar tango. Fina ironia, pois o mesmo tinha sempre um esgar no lábio inferior esquerdo.




Por outro lado, a mulher não foi tratada, somente, pela visão machista, típica do tango. Há várias canções que a apresentam com carinho, tristeza e poesia. São exemplos típicos os tangos: “Malena” e “Maria”. Malena, aquela que tinha uma farta cabeleira, cantava o tango como nenhuma outra e que punha seu coração em cada verso. Malena, a que perfumava o subúrbio com sua voz melodiosa. Malena, a que tinha dores de bandoneão. Malena, a que havia sofrido a dor de um amor não correspondido o que lhe havia dado o tom triste à sua voz. Malena, a que cantava o tango com voz de sombra. Malena, a que cantava o frio do último encontro. Ao ouvinte, apaixonado, só restava o consolo de perceber que, ao rumor dos tangos cantados por Malena, ela se fazia melhor do que ele próprio. Malena, a que tinha os olhos obscuros do esquecimento. Malena, a que tinha sangue de bandoneão nas veias. Malena, a que cantava o tango com voz quebrada. Malena, aquela que, simplesmente, cantava o tango para expressar melhor sua amargura pelo amor perdido na mocidade. A poética letra é de Homero Manzi e coube a Lucio Demare a produção da música. Quantas vezes, no cotidiano, temos notícia de que alguém, no caso uma mulher, embrutecida pela dor do amor preterido torna-se má, pelo menos em questões amorosas. Nada há de absurdo nesta letra. Neste modesto trabalho apresento uma versão na voz de Raul Bordale, bom cantor e intérprete.




Maria certamente é o nome de mulher mais usado em todas as partes do mundo. No cancioneiro popular brasileiro seria impossível nomear todas as canções que têm o nome Maria por título. Uma das mais tristes letras de tango é aquela elaborada por Cátulo Castillo e que traz como título “Maria” (coube ao virtuose do bandoneão, Aníbal Troilo musicá-la). Mais uma vez, o homem abandonado canta sua amargura pela partida da mulher amada. Maria, ou melhor, simplesmente Maria, aquela que foi levada por um outono. A chuva típica desta estação molhava as ruas e caía sobre o coração do desventurado amante. Nas sombras em que caiu somente ouve, o amante sofrido, os passos de Maria, num retorno que nunca acontece. Canta, então, que nunca soube do rumo infeliz que Maria tomou. Está esquecida na rua da melancolia. Muitos homens, depois de inúmeras aventuras e amores, não conseguem esquecer o primeiro amor. Sozinho no quarto simples que se apresenta enorme sem a presença de Maria, o homem chora e se lamenta. A propósito, esse tema do amor quase infantil é recorrente na poesia a música. Como exemplo, cito velha canção italiana, imortalizada por Carlo Buti denominada, exatamente, “Primo Amore” – “quello che non si scorda mai”. Esse tango é perfeito para a voz de Julio Sosa.




Há, ainda, um tema muito comum, mas forte, que trata daquele que, imerso em mágoas por uma traição, não consegue dar seu amor a outra mulher. O letrista Enrique Santos Discépolo soube muito bem captar esse sentimento no tango “Uno” (coube a Mariano Mores a confecção da partitura musical). O amante, apesar de traído, segue seu caminho de lutas e em busca de um novo amor até que, desiludido, percebe que ficou sem coração, no sentido amoroso da palavra. Nesse momento da caminhada encontra nova mulher, que o guarda com olhos apaixonados e, refratário ao novo amor, não consegue deixar de comparar esses olhos amorosos com aqueles que um dia o traíram. Então, lastima-se ao perceber que Deus trouxe, muito tarde, esse novo amor em seu caminho, pois nunca conseguirá, na medida certa, correspondê-lo. Termina maldizendo aquela que roubou, para sempre, toda a sua ilusão. Como se sabe o tango é uma paixão que atinge a todos. Assim, o grande tenor Placido Domingo gravou, no início dos anos 80, maravilhoso álbum denominado “Placido Domingo sings tango”. É dessa coletânea que separo a gravação a ser ouvida.




Quem não conhece ou tem notícia de alguém, com caráter mais fraco ou sensível, que se entregou à bebida depois de ser abandonado por aquela que considerava seu grande amor. Quase sempre, a justificativa para o uso excessivo do álcool se fundamenta no fato de que a bebida serviria para esquecer o amor destruído. Paradoxalmente, o infeliz quanto mais bebe mais se lembra da leviana que o abandonou. Sem dúvida há nesse agir desesperado algo de autopunição e de masoquismo. Uma situação como a descrita é um prato cheio para que os compositores de tango pudessem exercitar sua inspiração. Assim, o tango emblemático para a situação seria “Nostalgias” que tem letra de “Enrique Cadícamo” e música de “Juan Carlos Cobián”. O desventurado amante abandonado quer embriagar seu coração para esquecer um louco amor e procura apagar os beijos recebidos e que não mais se repetirão na boca de outras mulheres. O amor preterido, por isso mesmo, se tornou uma obstinação e o trágico herói da canção levanta os copos de bebida para apagá-la, mas, a cada brinde, essa obstinação aumenta. Desesperadamente, sente saudades (nostalgias) da risada louca da ex amante e, principalmente, quer sentir, outra vez, a respiração da mulher amada, como um fogo junto à sua boca. Mas, o que o destroça, na realidade, é saber que outro, rapidamente, estará falando-lhe de amor Poeticamente, o amante preterido pede ao bandoneão que gema um tango cinza e insinua que ao mesmo, talvez, lhe faça mal um amor sentimental, assim como a si mesmo. Com o coração enternecido pelo álcool chora a ausência da amante na esperança, vã, de esquecer para sempre um amor tão destruidor – a eterna tentativa de afogar as mágoas num copo. Sabe, contudo, que sua alma de fantoche não permitirá que isso aconteça. Na realidade existem amores que são inesquecíveis, para o bem ou para o mal. Afirmar, então, que essa letra é uma apologia ao absurdo é o mesmo que dizer que a vida é absurda. Mais uma vez Placido Domingo interpreta esse tango destruidor. Cabe ressaltar que a palavra saudade, com o significado comumente empregado, somente existe na língua portuguesa. Em suma, saudade não tem tradução e a palavra, em espanhol, que mais se assemelha a ela é “nostalgias”.




Inquestionavelmente, Carlos Gardel tinha duas grandes paixões: as mulheres e o turfe. Soube cantá-las com muita propriedade. O tango “Por una cabeza” musicado por Gardel e com letra de Alfredo Le Pera, seu grande parceiro, é o exemplo perfeito desse estado de alma. Numa tarde de domingo, provavelmente no Hipódromo de Palermo, Gardel faz analogia, até certo ponto perversa, entre um potro que deixa de ganhar por uma cabeça e a mulher falsa que, recém conhecida, jura amor eterno. A cabeça do potro, cuja mão do jóquei afrouxou as rédeas na chegada, sarcasticamente diz, ao regressar, que Gardel já devia saber que não se deve jogar. Mas, há uma breve compensação: a do flerte amoroso descompromissado. A letra trás uma comparação pouco lisonjeira entre o cavalo perdedor e a mulher de riso e vida fácil. Sabe o apostador, dos dois jogos, que a chance de vitória é muito pequena. Mas, se no domingo seguinte tiver uma barbada, mesmo que não mais tenha forças para assistir a um final renhido, mesmo que o prazer não mais exista de qualquer modo se acabará por inteiro. Esse tango trás várias gírias próprias do ambiente do turfe: “metejón” (endividamento por dívida de jogo); “timba” (jogo de azar); “pingo” (pangaré). Nada há de absurdo nessa história jocosa – a associação do jogo de azar com mulheres descompromissadas é antiga e parece que permanecerá para sempre, pois é própria da natureza humana. No folclore e anedotário popular existem várias histórias de homens incautos que perderam grandes fortunas nas patas de cavalos lerdos, ou entre as pernas de mulheres ligeiríssimas. Mais uma vez me socorro da interpretação de Carlos Lombardi.

Evidentemente, sentimentos como o despeito e o orgulho ferido foram abordados pelos compositores de tango. A conhecidíssima canção “Mano a mano”, com letra de Celedonio Flores e música de Carlos Gardel e José Francisco Razzano serve de parâmetro para que tais sentimentos sejam analisados. Mergulhado em profunda tristeza somente sobra ao amante preterido ofender e menosprezar a mulher que o abandonou, mas reconhece que foi por ela amado. Lembra-lhe, ferinamente, que a conheceu numa casa de pensão e que hoje a mesma é uma “bacana” e que a vida lhe ri e canta. Ofende-a afirmando que foi enganada (“engrupieron”) pelo dinheiro, as amigas e o gigolô. Revoltado contesta dizendo que a ela nada deve e que ficaram quites (“mano a mano hemos quedado”). Exterioriza sua revolta ao afirmar que deseja que o bacana que a mantém na cama tenha “pesos duraderos”. Arrependido faz uma exortação: caso no futuro a mulher ainda desejada precise de uma ajuda ou de um conselho pode procurá-lo e que o mesmo fará de tudo para atendê-la. É uma história típica da vida que, certamente, ocorre desde que o mundo é mundo. Todos nós conhecemos casos de homens que perdem o amor próprio e se arrastam atrás de mulheres que não merecem nenhum sacrifício. Mais uma vez Alberto Cabadas apresenta esse tango.




Quem nasceu numa cidade grande, tem especial carinho pelo bairro onde deu os primeiros passos na vida e no amor e onde cresceu como indivíduo, mas identificado a um microcosmo social. O termo “arrabal”, muitas vezes mencionado nas letras de tango não é sinônimo de periferia. Arrabal é o bairro tradicional onde se dança ou se canta o tango. Desse modo, pode-se perceber o carinho que o argentino tem pelo seu arrabal. Alfredo Le Pera e Mario Batistella fizeram a letra e coube a Carlos Gardel a feitura da música da canção “Melodia de Arrabal”. Este tango é emblemático ao se falar de arrabal, no sentido dado pelos nascidos em Buenos Aires. Nele um homem nostálgico relembra de seus grandes momentos vividos naquele seu pedaço de vida. Todo lirismo já se faz sentir logo no primeiro verso quando o cantor evoca seu bairro ao dizer que o mesmo é prateado pela lua. Nele os rumores do tango e da milonga se fazem ouvir através de um fole que ressoa (“um folle que ressonga”), apesar da grande pobreza do lugar. Relembra-se saudoso da jovem, coqueta, que espera alguém sob a luz de um lampião. Aquele não era um bairro qualquer, pois era especial por ter a alma de um rouxinol sentimental. Chora de tristeza e emoção e as lágrimas que caem de seus olhos cansados são como beijos que derrama sobre as pedras do calçamento. Seu bairro foi berço de jovens audazes e de cantores, de brigas e entreveros e de todos os seus amores. Por fim, relembra que nos muros de seu bairro, gravou, com o aço de sua faca, os nomes mais queridos: Rosa, Margot e a jovem Rita que no primeiro encontro lhe deu seu amor. Nada há de absurdo numa expressão musical desse porte. Quando muito se poderá falar em ingenuidade. Quantos muros de São Paulo não têm os mais variados nomes de mulheres gravados, como testemunho de um amor juvenil. Mais uma vez me socorro de Raul Bordale.




O universo tangueiro não só abordou as mazelas e desgraças individuais e amorosas, sejam amores juvenis ou aqueles que infernizam a alma por toda uma vida, pois não se olvidou de tratar das vicissitudes sociais. Existem dois tangos de Enrique Santos Discépolo (letra e música) que tratam de forma exemplar a temática social, com certa ironia e com uso de metáforas preciosas. Falo de “Yira... Yira”, de 1929 e de “Cambalache”, de 1935. – os dois têm como pano de fundo as grandes transformações sociais ocorridas depois da grande queda da Bolsa de Nova Iorque, numa sexta-feira de outubro de 1929.




O primeiro deles – “Yira... Yira” - - trata diretamente da queda da Bolsa de Valores novairquina. Nesse fatídico dia grandes fortunas foram perdidas, empresas conceituadas faliram, os empregos se tornaram raros e, aos poucos, um grande número desempregados surgiu. E é, exatamente, da desdita dos desempregados que este tango trata. O autor, amargamente, afirma, referindo-se a um ouvinte anônimo que quando a sorte, que é uma mulher impiedosa, o tiver abandonado, quando estiver andando pelas ruas, desesperado, em busca da comida que saciará a sua fome, verá que ninguém se importará e o mundo, cinicamente, continuará girando. Mesmo quando suas baterias estiveram descarregadas e estiver buscando um peito fraterno para morrer abraçado, mesmo quando te deixarem muito cansado depois de trabalhar, verá que o mundo continua girando. Mas, aquilo que mais é emblemático na poesia de Discépolo se encontra na última estrofe quando afirma que ninguém se importará com qualquer um, mesmo na hora de sua morte, pois estarão experimentando a roupa que deixará e o mundo, impiedosamente, continuará girando. Mais uma vez nada há de absurdo nessa grande filosofia popular, no infortúnio daqueles que perderam seus empregos. É que acontece no cotidiano das grandes cidades. Aqui trago um testemunho pessoal: na minha infância, no Brás, tínhamos uma vizinha espanhola, já avançada nos anos de vida e que estava à beira da morte já alguns dias, numa agonia que parecia sem fim Suas netas, inconseqüentes, já dividiam os parcos pertences da velha senhora, num butim irônico e desrespeitoso. Ao ter conhecimento que a neta querida se apossara do vestido que escolhera para a última viajem, encheu-se de brios e viveu mais dois meses e não morreu antes de dar uma grande descompostura nos parentes levianos. Afinal, como diz a letra, o mundo é cego e surdo. É um tango cheio de gíria lunfarda, a língua do tango. Escolhi uma interpretação de Julio Iglesias para deixar marcada essa poesia popular e de filosofia simples e direta.




O segundo tango, “Cambalache”, trata da mais cruel conseqüência da queda da bolsa de 1929 – o nefasto crescimento da criminalidade e da necessidade que o ser humano tem de tirar vantagem em tudo que puder. Na gíria portenha Cambalache é o local onde se vende de tudo, inclusive objetos roubados. O autor afirma, de início, de forma categórica, que o mundo é e sempre foi uma porcaria e que sempre teve ladrões e maquiavélicos, contentes e descontentes, valores e dublês. Desolado, afirma que o século vinte se superou, porque todos vivem numa desordem e estão de mãos dadas no mesmo lodo. Hoje resulta que é o mesmo ser direito ou traidor, ignorante ou sábio, ladrão, generoso ou caloteiro. Tudo é igual, seja um burro ou um professor. Os imorais se igualaram a todos os bons. A razão foi atropelada porque qualquer um é um senhor. Cita dois bandidos famosos na cidade de Rosário, em especial Don Chicho, a quem compara a Napoleão. Nesse século vinte, cambalache e febril, aquele que não chora não mama e quem não rouba é um otário. Desiludido afirma que todos devem se por de lado porque a ninguém importa se o outro nasceu honrado. Dá no mesmo ser trabalhador ou vagabundo, pois o honesto está no mesmo patamar daqueles que vivem dos outros, daquele que está fora da lei ou dos que vivem das mulheres (“minas”). A atualidade dessa letra, escrita em 1935, é impressionante, pois se explica por si mesma. Mais uma vez Julio Sosa apresenta uma grande interpretação.




O tango tradicional, como instituição argentina, sofreu grande transformação, a partir dos meados dos anos 50, com a revolução instrumental e harmônica imposta pela exuberante música de Astor Piazzola. Ex bandeonista da orquestra típica de Aníbal Troilo, Astor Piazzola aproximou o tango do jaz e da música erudita. Era um virtuose do bandoneão e seus espetáculos, dentre os quais alguns apresentados em São Paulo (que tive a oportunidade de assistir) sempre foram um sucesso de crítica. É certo que sua plateia era, musicalmente falando, mais refinada. Nos anos 70 viveu exilado na Itália, onde produziu seus melhores discos, recebendo vários prêmios da crítica especializada. Piazzola, de início incompreendido por seus patrícios, abandonou o universo típico do tango, afastando-o dos gigolôs e das prostitutas, relegando os cafés mal afamados a um segundo plano. Pode-se dizer que Piazzola deu dignidade ao tango e, com sua refinada técnica, levou-o aos palcos mais afamados do mundo.




Coube a Piazzola a composição de algumas das melhores músicas instrumentais da segunda metade do século XX. Lembro-me da primeira vez que vi um espetáculo desse fabuloso músico, no início dos anos 70, no TUCA. Já nos primeiros acordes sua música me cativou. Vestido de preto, mancando por um defeito na perna esquerda (nunca soube o motivo) e com o bandoneão sobre esse joelho compunha uma figura imponente, embora sua estatura fosse apenas mediana. Era ranzinza, quase nunca sorria, mas quando punha suas mãos naquele bandoneão o teatro se calava, respeitosamente, e a magia estava feita. Para mim sempre pareceu que Astor Piazzola nasceu colado ao seu bandoneão, como se fossem gêmeos siameses, tão grande era a afinidade entre os dois. A grande maioria de seus tangos não tem letra, mas são peças musicais brilhantes. Com o requinte harmônico diferenciado e de alta qualidade era inevitável que Piazzola fizesse parcerias que se tornaram marcantes no mundo musical e estão inscritas entre melhores jamais feitas. Promoveu um encontro com Antonio Carlos Jobim, gravou um CD com Gerry Mulligan, grande saxofonista de jazz, denominado “Summit” e que é verdadeira obra prima. Além disso, tendo em vista a inquestionável sonoridade de sua música fez composições destinadas a filmes de grande sucesso, como a película francesa “Chove Sobre Santiago”, que retrata de forma dramática os últimos dias de Salvador Allende no poder e o banho de sangue que se seguiu ao início da ditadura de Pinochet. Teve oportunidade de se unir ao poeta uruguaio Horacio Ferrer musicando várias de suas poesias, dentre as quais se destaca a famosíssima “Balada Para Un Loco”. Escrever sobre a música de Piazzola demandaria muito tempo, espaço e conhecimento técnico. Mas, para aqueles que não o conhecem ou que o subestimaram vale a pena ouvir algumas de suas principais composições: “Adiós Nonino” (obra feita, como um “réquiem”, depois do falecimento de seu pai, que tinha por apelido “Nonino”); “Libertango”; “Meditango”; “Violentango” e a visceral “Balada Para Um Loco” (declamada pelo próprio Horacio Ferrer) – músicas que além de ouvidas devem, sobretudo, ser sentidas. Da citada obra prima “Summit” acrescento à audição a composição “20 Years Ago”, na qual o bandoneão de Piazzola, faz espetacular contraponto ao sax tenor de Gerry Mulligan, numa audição que se reveste da mais pura magia.




É inquestionável que o tango se universalizou por vários motivos, dentre os quais se destacam a sensualidade a ele intrínseca, o exotismo de vir de uma região que sempre exerceu grande fascínio nos europeus, a América do Sul e, fundamentalmente, pelo valor de sua música. Assim, a partir da segunda década do século XX ele flanou por todos os salões de baile do mundo, em especial na Europa, tornando-se uma verdadeira paixão e dançar tango se transformou em grande obsessão. Especialmente, em Paris e Berlim o tango se tornou obrigatório e grandes bailarinos argentinos imigraram, sobretudo para Paris, transformando a Cidade Luz na segunda capital do tango. Desse modo, o “glamour” do pós Primeira Guerra rendeu-se à sensualidade do tango. De forma clara apresentou-se uma combinação de fatores que se mostrou fatal: ambiente propício, jovens sequiosos de prazer e uma dança sensual por excelência, onde os corpos se roçavam permitindo que a imaginação voasse solta.




Foi assim, então, que nasceu “Jalousie”, o tango francês que fascina até hoje. Dizem os especialistas em música que este é o tango perfeito. Certo ou errado, no momento pouco importa, porque, certamente, não há nome mais perfeito para um tango do que este – “ciúmes”. Era impossível que um sentimento tão forte e que tantas tragédias propiciou não se fizesse presente num ritmo musical que é passional, por si mesmo. Coube a “Jacob Gade”, violinista dinamarquês, a composição dessa música. Gade teve como inspiração uma notícia de jornal na qual o marido havia matado sua esposa num momento de fúria porque estava com ciúmes, tendo em vista que a mesma havia se insinuado para cativar outro homem, numa festa, durante uma dança de salão. Cumpre lembrar que nesta época o cinema era mudo e nas grandes salas de exibição ao redor no mundo a trilha sonora era ao vivo. Assim é que, em 14 de setembro de 1925, no cinema Palads de Paris, Jalousie foi apresentada e apreciada pela primeira vez. Tornou-se, quase que imediatamente, um sucesso mundial. Os historiadores de música dizem que até os anos 70 era tocada, a cada minuto, por pelo menos uma vez, o que rendeu a Gade enorme fortuna, baseada em direitos autorais. Até hoje, na cidade natal de Gade, Vlejel, Dinamarca, existe uma Fundação com seu nome, que auxilia na instrução de jovens músicos pobres. Como violinista, Gade deu ênfase, em sua composição, ao violino, que lembra a sonoridade dos violinos ciganos, que são passionais, arrebatadores e sensuais. É este fato que propiciou a confusão que se estabelece até hoje, pois muitos acreditam que Jalousie é uma música cigana. A primeira gravação de Jalousie coube ao maestro Arthur Fiedler no comando da Boston Pops Orchestra. Jalousie, ciúmes, gelosia, celos, é palavra que, seja em que língua é pronunciada ou escrita,tem uma aura toda especial que dificilmente pode ser definida ou interpretada. É algo que se sente ou não e que quando é sentido, quase sempre, é devastador. Há no tango qualquer coisa de misterioso, de encantador e, por vezes, de irônico. Há desse modo uma grande dose de ironia no fato de que o tango, sendo eminentemente argentino, tem como seu representante mais executado uma composição feita na atmosfera de Paris e assinada por um violonista dinamarquês. Esta é, sem nenhuma dúvida, uma ironia do destino. Mal comparando é como dizer que o melhor samba do mundo não é brasileiro. Em nenhuma das antologias de tango que consultei há a menor referência a essa composição, embora todas as grandes orquestras típicas argentinas a tenham gravado. Jalousie é música francamente instrumental, mas, em várias línguas, foram produzidas letras que, contudo, não tiveram a mesma aceitação. Em espanhol coube a G. Dasca a feitura de uma letra bem conceituada e que transcreve, na medida do possível, a atmosfera que foi passada por Gade. Trago, neste trabalho, uma gravação feita pela orquestra de Luiz Mendonza, onde há grande harmonia entre violino, acordeão, bandoneão e piano. A gravação com letra cabe a Placido Domingo (celos).




A febre europeia do tango, como uma epidemia, atingiu também a Itália, país onde a música tem grande importância. Praticamente, todos os grandes cantores populares italianos das primeiras décadas do século passado fizeram uma prazerosa excursão musical pelo ritmo argentino. Algumas dessas canções povoaram meu imaginário infantil. Até hoje está gravada em minha memória, como uma marca indelével, feita a fogo, a imagem de meu pai e seus irmãos, nas inúmeras festas que fazíamos, cantando muitas dessas doces melodias. Como bom aprendiz eu tentava acompanhá-los, em vão. Hoje, passados tantos anos, o que resta é a doce recordação. Fica, então, claro que poderia enumerar uma série bem grande de “tangos italianos”. Como uma espécie de tributo àqueles maravilhosos italianos, de maneira prazerosa, cito apenas as seguintes canções: ”Chitarra Romana”, “Violino Tzigano” e “Tango Italiano”.




O cantor toscano Carlo Buti, nas primeiras décadas do século XX, fazia grande sucesso entre os imigrantes italianos radicados em São Paulo. Era dono de apuradíssima técnica musical e sua voz melodiosa e muito bem colocada nas canções lhe rendeu o epíteto de “La Voce D’oro”. Muito se esperava de um cantor que era chamado de “A voz de Ouro” e, cada nova gravação sua que vinha a público, ainda feita nos rudimentares discos de 78 RPM, mais realçava a sua grande fama. Uma de suas canções emblemáticas foi, exatamente, a acima citada “Chitarra Romana”. Nela, um jovem apaixonado, sob o manto estrelado de Roma, invoca a cumplicidade da Cidade Eterna. Solitário e desiludido pede que o violão (“chitarra”) romano o acompanhe, na serenata que faz ao amor perdido e não mais correspondido. Assim, no alto de uma das sete colinas romanas vê o bairro de Trastevere e o rio que o acompanha e clama, mais uma vez, pelo acompanhamento do violão, pois intuitivamente sabe que a sua bela amada está num balcão distante. Ingênuo, diz ao violão, companheiro de todos os seresteiros, que se a voz é um pouco velada que o acompanhe em surdina. Carlo Buti fez sua famosa gravação ao estilo Carlos Gardel, com acompanhamento só de violões. Aqui trago uma versão mais moderna, na voz de Luciano Pavarotti, num espetacular arranjo de Henry Mancini, gravado em 1987, com a Orquestra do Teatro Comunale di Bologna. Inesquecível.




A segunda canção mencionada – “Violino Tzigano” – traz, como a decantada “Jalousie” uma história de paixão. Faz interessante comparação entre o mistério de um violino cigano tocando e a nostalgia de um amor que está longe. O jovem cigano, de ar triste e apaixonado, toca seu violino fazendo-o chorar entre os dedos, enquanto o homem abandonado pede que o violino cigano toque somente para ele. Relembra que se apaixonou quando um violino cigano tocava. O som nostálgico do violino o entristece mais ainda e o arrasta para um amor que está muito longe. Conclui pedindo que o violino chore porque talvez ele o acompanhe com seu choro. Mais uma vez há perfeita combinação entre violino, violão e acordeão, instrumento que substitui, quase a contento, o bandoneão. A interpretação de Carlo Buti, para seus aficionados italianos, é insuperável.






A terceira música recebe a denominação de “Tango italiano”, datada do início dos anos 60, concorreu ao Festival de San Remo. Esse simples fato denota a importância do tango na música italiana. Nela uma jovem que vivia num país distante, em certa noite passeava pelas ruas de uma cidade ‘a beira mar, sem companhia. Ouvia o som das “juke box” que emitiam motivos jazzísticos. De repente, ao longe, ouviu uma nota musical conhecida que se elevou e fez seu coração parar, pois era um tango italiano. Um doce tango que a fez voar a um amor distante. O tango lhe havia trazido uma grande nostalgia e subitamente quis retornar ao seu amor italiano, nas asas daquele tango, um tango italiano. Quantas vezes na vida uma canção, aparentemente esquecida, nos trouxe à lembrança um amor que parecia esquecido ou, mesmo, uma doce recordação da infância. O que chama a atenção é o fato que essa composição concorreu ao prêmio do festival de San Remo de 1962. Connie Francis fez uma gravação em que canta em inglês e em italiano, mas com forte sotaque americano. A versão ora apresentada é a original, na voz de Milva.




Pela proximidade e pela força dos seus argumentos musicais, no Brasil, o tango também fez muito sucesso e grandes compositores da música brasileira enveredaram pela seara do tango, bem como os maiores cantores populares de nosso país. Lembremos apenas três deles: Dalva de Oliveira (A Inesquecível em Tangos); Ângela Maria (Os Mais Famosos Tangos e Fados) e Nelson Gonçalves (O Tango Na Voz de Nelson Gonçalves). A maior parte dessas gravações foram versões dos mais famosos tangos argentinos que fizeram grande sucesso no Brasil. Contudo, existem muitas composições brasileiras, com temas e argumentos típicos da nossa sociedade que se tornaram grandes sucessos de público. Nesse caminho se destacam nomes do porte da dupla Herivelton Martins e David Nasser, com pelo menos duas grandes composições que se imortalizaram na voz de Nelson Gonçalves (“Vermelho 27” e “Carlos Gardel”). Por sua vez, Ângela Maria deu interpretação marcante à composição inesquecível da dupla, por vezes muito contestada, Evaldo Gouveia e Jair Amorim (“Tango Para Tereza”).




No universo do cancioneiro popular brasileiro Herivelton Martins é um caso a parte, pois enveredou com grande maestria pelos mais variados gêneros musicais. Manguerista de coração compôs grandes sambas e frequentava a escola com assiduidade, trazendo à boca seu indefectível apito, com o qual comandava as rodas de samba. Por outro lado, sua querela amorosa com Dalva de Oliveira lhe deu o substrato para a feitura de grandes samba-canções que até hoje são regravados pelos jovens cantores brasileiros. Sua incursão pelo tango se deu em parceria com David Nasser, jornalista carioca, amigo de boemia. “Vermelho 27” trata das desditas do jogador inveterado que, enquanto a sorte lhe bafejou na roleta, teve muitos amores e amigos e que termina seus dias como um andarilho maltrapilho. Quase todos nós conhecemos casos semelhantes, onde o vício desfaz lares e destrói vidas. “Carlos Gardel” é uma pungente homenagem ao grande cantor argentino, onde a letra da composição fala por si mesma. Essa canção fez grande sucesso e teve uma versão em espanhol. Assim, trago à escuta de todos, na voz de Nelson Gonçalves os dois tangos, enquanto cabe a Carlos Lombardi a interpretação, em espanhol, de “Carlos Gardel”.




A dupla de compositores Evaldo Gouveia e Jair Amorim sempre foi muito questionada pelos críticos musicais. Também tiveram a oportunidade de enveredar por vários ritmos musicais. São os responsáveis pela composição “Conceição”, talvez o maior sucesso de Cauby Peixoto. Em 1974, venceu a disputa pelo samba-enredo da Portela que homenageava Pixinguinha, motivo pelo qual a escola foi muito criticada. No tango compuseram “Tango Para Tereza”, no qual o ouvinte, ao escutar, no apartamento ao lado, um velho tango de Gardel, relembra-se de seu grande amor- Tereza. Nessa composição há uma frase cativante: “hoje, trago um tango dentro d’alma”. Mais uma vez a música traz à memória um amor que está distante e inatingível. Ângela Maria e Agnaldo Timóteo fizeram uma gravação memorável. Mais recentemente Ney Matogrosso fez um registro digno de nota. Trago as duas gravações para serem ouvidas.




Toda seleção, por idiossincrasia própria, implica numa escolha de ordem pessoal. Em nenhum momento me preocupei em fazer uma seleção dos melhores ou mesmo dos mais conhecidos tangos, pois a mim falta a aptidão técnica necessária. Apenas escolhi aqueles que, sob minha óptica apaixonada, são os mais simbólicos para o contexto que resolvi aplicar a esse texto modesto: amor, desilusão, despeito, traição e tantos outros sentimentos de grande magnitude. Embora somente tenhamos consciência quando adultos, desde muito pequenos estamos imersos num mundo de simbolismos. A música, seja qual for sua origem, traz no seu âmago os arquétipos mais profundos da humanidade. O inconsciente coletivo está presente na música: o amor filial e maternal, a honra, a dignidade e, também, os vícios e as degradações da alma. Por isso, até com certa pretensão, afirmo que o tango é um estado da alma e que todos nós, em certo momento da vida, carregamos um tango dentro de nossa alma. Afirmo isso no sentido de que por mais que evoluamos em nossa intelectualidade, por mais que aprimoremos o nosso espírito ainda sofremos as mazelas do amor, ainda temos arestas, pontudas, a serem aparadas. E negar esses defeitos, pequenos ou grandes, é admitir que a vida seja absurda, que a mesma não tem sentido e que estamos, todos, ao bel prazer de um barco sem timão e com as velas abaixadas. Se é verdade que não temos o total controle dos acontecimentos, não menos verdade é que aprendemos com os nossos erros e, justamente, nos orgulhamos dos nossos acertos. Nada há de absurdo na vida e a música – qualquer música -, como retrato da mesma nada tem de absurda.
Assim, taxar uma



manifestação popular, como se fosse um subproduto de uma arte exuberante, ou seja, a música é ser elitista e, por isso, perder aquilo que de mais puro existe no povo. Os mesmos temas tratados pelos grandes filósofos – o amor, a crença num ente superior, a importância ou o abandono de viver, o contexto do homem no mundo, a traição, o amor pela pátria e pela cidade natal, os vícios, a autocomiseração, as fraquezas do espírito e do caráter – são abordados, através dos tempos (de todos os tempos), pelo povo, seja no artesanato, no teatro, na literatura, na dança ou na música. A música, a canção, espalhadas pela tradição oral, quando usadas num contexto político-social adequado, têm um poder devastador. Basta que nos lembremos do povo de Marsella quando marchou rumo a Paris, contra a tirania, cantando “La Marsellesa”.




Meus amigos mais chegados e meus familiares dizem que eu não vivo sem música. Eles não entendem como posso, no mesmo dia, ouvir uma grande ópera, gênero que me fascina, e, mais trade, uma bela canção italiana, um tango ou um grande samba (sem que me esqueça do bom e velho bolero). Na minha modesta opinião isso se chama ausência de preconceito, espírito aberto para o diferente. Na quadra da vida em que me encontro não mais me preocupo com rótulos, com a opinião alheia quando emitida como censura (e nem como elogio), apenas respeito e não mais discuto com o intuito de provar que tinha razão. Porque na realidade quem tem sempre razão é a vida, com a qual não deveríamos brigar nunca, apenas aceitar aquilo de bom que ela nos dá. A música é um dos prazeres mais quentes e acolhedores que a vida nos reservou e, sinceramente, creio que, seja qual for o ritmo, a origem, o refinamento técnico ou a simplicidade das composições sempre haverá, em nossos corações, um espaço para que a acolhamos e nos deliciemos. Aquele que olha a vida com único olhar deixa de vivê-la em todas as suas nuances, perde alguns de seus mais elaborados matizes e, quando se der conta que assim procedeu, certamente, se arrependerá. Olhar a vida com preconceito, com valores preestabelecidos, é menosprezar a inesgotável capacidade do Criador dos Mundos de encantar, de envolver e de ensinar. Tenho a certeza de que Deus nos ensina através da música, dos poetas e dos filósofos.




Por fim, sei que esse trabalho é longo, talvez maçante para muitos, pois são 22 páginas, mais de 11.400 palavras, apenas para dizer que gosto de tango, que gosto de música, que amo a vida e que ficaria escrevendo até que a memória me falhasse ou que minha discoteca tivesse acabado.





São Paulo, 22 de abril de 2.011.

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