Zeev Tuchmajer
- Oi vêi (interjeição de cansaço). A cada dia que passa esta porta de aço fica cada vez mais pesada..
- É, minha filha Hana me diz: “Papai, para
que você tem que abrir a loja às 7 da manhã; por que não esperar até o João
chegar para levantar esta porta pesada? Abrindo ás 8 você também não perde
nada.”
-Bem, eu não perde nada, mas com certeza também não ganho nada! Além do
mais: o que eu vou fazer em casa das 5 até as 8! Ler jornal? Em 5 minutos já li tudo. Chacina aqui, chacina lá;
guerra aqui, guerra lá; pegaram deputado roubando. Qual a novidade ? É, a novidade é
que pegaram ele, mas só os pequenos. Nem o Corinthians dá mais prazer de ler.
Ou perde ou não ganha. Tudo cáliquer ( perna de pau). Além do mais, sempre tem
as Marias que compram alguma coisinha no caminho ao emprego.
Jacob levantou a porta, pegou
os cadeados, beijou a Mezuza (caixilho pequeno com um pergaminho sagrado,
pregado na batente da porta) e entrou na pequena lojinha na Rua José Paulino.
Depois de acender as luzes
pegou a vassoura e como tem feito nos últimos 45 anos, varreu a calçada me
frente de sua loja, cantarolando algo em Idich. Aprendeu, já não lembrava de
quem, que calçada limpa na frente da loja chama
freguês.
Parou na porta, olhou para
o céu límpido e decidiu que hoje vai ser um bom dia. Toda a sua vida, quando
estavam todos com saúde ele acreditava que o dia seria bom.
- “Entra Dona Maria, entra”,
disse para uma moça que parou na porta olhando a vitrine. “A senhora ser a
primeira freguesa hoje e eu fazer preço especial para abrir caixa”. Apesar de
falar um português perfeito após tantos anos de Brasil, quando atendia no
balcão sempre falava um português incorreto, pois sentia que as freguesas
pensavam que levavam vantagem sobre ele por causa do idioma.
Um pouco antes das 8
começaram chegar os vizinhos, todos coreanos, para abrir suas próprias lojas,
todos cumprimentando polidamente. Nesse pedaço de rua só sobrou ele. Alguns
amigos já estão com Riboino Shel Oilam (Deus Todo Poderoso). Os outros, como
Berl e Itzhak, se aposentaram e alugaram o ponto.
- Nenhum de nossos filhos quis ser
comerciante. Na verdade, nem eu quis que meus Froim, Duvid e Khana tivessem a
vida dura de comerciante. Nos queríamos que nossos filhos fossem só doctoirim
(médicos), advogados ou dentistas. Engraçado, os filhos dos coreanos se matam
para estarem entre os primeiros no vestibular.
Na faculdade se esforçam para se graduar na elite, e depois – cada um
vai e abre uma lojinha. Vai entender.
2
O João chegou as quinze
para as oito. Jacob entrou no banheiro. Na hora de lavar as mãos olhou no
espelho. Viu um homem franzino, altura mediana, quase sem cabelos, tinha um
rosto pouco enrugado mas de aparência saudável, isto apesar de seus 76 anos de
idade. Sorriu para sua imagem, os olhos brilhando. Sempre acreditou que um
sorriso nos lábios tornava a vida mais fácil, ainda que nem sempre mais alegre.
Às 8:01 chegou a Camila.
Sempre chegava um minuto depois das oito, nunca um minuto antes das oito.
-Filha da mãe! Tenho a certeza que ela chega mais cedo no pedaço. Deve
se esconder fazendo hora em algum bar por aí e entra sempre atrasada só para me
afrontar. Sorte dela de eu ser bom, tolerante e considerando ela não ter pedido
aumento nesse último ano, e mais importante, de ter as trompas amarradas. Licença maternidade é muito transtorno e
custa caro.
A loja tinha somente 3
metros de largura e 5 de profundidade. No fundo ficava sua escrivaninha donde
dava para ele controlar o movimento e levantar rapidamente para atender
fregueses quando necessário. O banheiro ficava atrás num canto. Noutro canto
uma cortina pendurada servia de provador. Tinha poucas prateleiras com roupa
intima feminina e para complementar algumas saias, blusas e calças.
Sentou na escrivaninha e,
como toda manhã, olhou com ternura para a foto da família, tirada quando do
casamento da sua neta Andréa. A sua Shaindale estava sorrindo, e parecia que
era só para ele. Não parecia que já
fizera três anos desde que ela faleceu.
-Oi minha Shaindale (minha coisa linda), se você soubesse quanta falta
você me faz, não teria ido antes de mim.
Lembrou quando a viu pela
primeira vez, foi em 1946. Ele voltou à sua cidade natal Staszew para ver se
alguém da família sobreviveu. Encontrou seu primo Leibel, e quando foi jantar
com ele conheceu a cunhada desse, a Shaindale. Um a moça frágil, cabelo negro,
olhos negros grandes -olhos de quem passou muita fome – braços finos nos quais
o número tatuado ficou ressaltado. Foi compaixão que depois de conhecê-la
melhor virou paixão.
-Shaindale, cuide de nos todos aqui em baixo até o dia
de nos encontrarmos novamente.
Lá pelas nove horas a Khana
ligou para saber se estava tudo bem com ele.
Abriu a pastinha e retirou os
cheques a serem depositados no dia. Olhou um por um.
-Este aqui esta me cheirando à tchvok ( um caloteiro). Não sei por que
fui vender para ele apesar de meu nariz me indicar não fazê-lo. Bem, espero que
eu esteja errado.
“João, vai ao banco e
depois de fazer os pagamentos e depósitos me tira o saldo.”
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“Senhor Jacó, não quer que
eu passe no balcão para ver se tem cheque devolvido?”
“Vira esta boca para lá!
Cheque devolvido! ‘Tá bom João, dê uma olhada, mas rapidinha.”
Um pouco antes do meio dia
entrou na loja um rapaz vestindo um terno e com uma pasta de couro novinha na
mão. Dirigiu se até a Camila, lhe disse algo e está apontou para o Jacob.
-Um Khaper (fiscal)! Estou cheirando um Khaper - e logo já foi se
curvando um pouquinho fazendo uma cara triste e abatida.
“O senhor é o proprietário
da loja ?”
“Quem quer saber ?”
“Eu sou da Secretária da
Fazenda do Estado” e já foi tirando do bolso interno do paletó o documento que
o identificava.
“Em que posso ajudá-lo Sr
?....Sr. ?.....”
“Meu nome é Dr. Francisco
Alves Figueira e eu fui designado para fiscalizar a sua empresa. E o senhor é
?.. ”
- Olha ele, olha como fala! Aqui no Brasil qualquer shmendrik (pivete) é
logo um D-o-u–t–o–r.
“Dr. Figueira, primeiro não
vamos exagerar, empreeesa. Empresa é Petrobrás, Light, Volkswagen. Eu só tenho
uma pequena lojinha. Eu sou Jacob Cohen.”
“Bem Sr. Jacob, eu vou
precisar dos livros fiscais. Quem é o seu contador ?”
Depois de fazer o termo de
abertura e de pegar o endereço do contador, despediu-se dizendo que vai voltar
em uma semana.
O Jacob ligou imediatamente
para o seu contador, e quando este atendeu: “Flávio, aqui é o Jacob Cohen. Tem
um fiscal indo para ai pegar os meus livros. Fala para ele que eu sou muito
velho, pobre e doente e vê logo se ele quebra galho.”
Apesar de já ter a
experiência de passar por muitas fiscalizações, foi uma semana de agonia.
Dormiu mal, comeu pouco, pois com fiscal - especialmente um que parecia ter
começado na Secretaria recentemente – a coisa podia ficar feia.
Na quarta feira, no meio da
manhã, eis que aparece o fiscal. O Jacob pensou logo: Mal sinal, quarta feira não é um dia de sorte. Se fosse terça ou
quinta.....
“Como vai
Dr.,....ehhhh.....Dr.?”
“Francisco” respondeu o
fiscal.
“Dr. Francisco, Dr.
Francisco, é isso. Então, tudo em ordem? Vai assinar os livros?”
“Um minutinho, Sr. Jacob.
Há uma discrepância entre o que apurei nos livros e o que vejo na loja. Assim à
primeira vista devia ter muito mais mercadoria. O Sr. Podia explicar?”
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“Discrep... oooo que?”
“Discrepância, diferença,
os números não batem.”
“Eu não entendo. Eu
trabalho tudo ceeeem per cento. Compra
tudo com nota, vende tudo com nota.”
“Bem. Então vamos fazer um
levantamento.”
“Para que levantamento
Doutor,vamos perder tempo. Enquanto faz levantamento - eu não vendo; o governo
deixa de ganhar impostos. O senhor sabe, eu sou velho e já não enxergo tão bem.
Ás vezes as freguesa rouba e eu não consigo ver. Vem muita mercadoria com
defeito e eu dou para caridade. Claro que vai faltar mercadoria.”
“Mas esta mercadoria também
tem que tirar nota”, disse o fiscal.
“O senhor quer que eu dar
nota para ladrão!?”
“Sr. Jacob, claro que não,
mas para instituições de caridade, sim.”
“Ah, eu não sabia! Agora eu
já sei, obrigado.” Disse Jacob.
“Sr. Jacob, infelizmente eu
vou ter que aplicar uma multa.”
“Dr. Francisco, para que
multa? Não da para dar um jeitinho?”
“Sr. Jacob, o senhor
sonegou, dinheiro este que vai para escolas, saúde e outras coisas.”
“Dr. Francisco, eu não
soneguei. Eu só peguei antecipado o que o governo me deve.”
“Como, o que o governo lhe
deve. É o senhor que deve ao governo.”
“Dr. Francisco, o senhor
sabe quanto tempo demora o governo devolver impostos, haa? O senhor não disse
que o governo dá o dinheiro para escola e saúde? Então, eu vou dar dinheiro ao
governo. Depois o governo tem que devolver para mim para a escola de meus
filhos e netos. Aí eu pensei: para que todo este trabalho? Eu pego o dinheiro e
pago sozinho a escola. A mesma coisa com a saúde. Eu pago sozinho o plano de
saúde. È menos papelada, menos trabalho para o governo, menos funcionários. O
governo faz economia e eu não preciso esperar anos para governo devolver o meu
dinheiro para pagar educação e saúde. Eu não soneguei, só adiantei a minha
parte!”
“Sr. Jacob, mas não é assim
que funciona! Imagina se cada cidadão fizer a mesma coisa. Vai faltar dinheiro
para o governo.”
“Dr. Francisco, não é o senhor
não, mas se desperdiça (rouba) muito
dinheiro no governo (tudo ladrão).
Então, se tem menos dinheiro, desperdiça (rouba)
menos. Olha doutor., eu tenho 76 anos e quero trabalhar. Eu não sou empresa mas
dou trabalho para duas pessoas – registradas! O senhor quer dar multa, o senhor
pode. Mas, então..... aqui esta a chave da loja. Eu vou embora e deixo para o
governo pagar Camila e João. Já estou ficando muito cansado mesmo.”
“Sr. Jacob, eu vou estudar
o caso e volto amanhã.”
“Doutor, para que estudar?
o senhor já é doutor. O senhor já sabe tudo!”
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“Ah, meu Deus, o senhor não
está facilitando para mim. Está bem, está bem Sr. Jacob. Vou aplicar uma multa
pequena; alguma coisa vou ter que multar, mesmo que só simbólica. O Sr. sabe,
para mostrar serviço lá na Secretária. Vou mandar o ofício ao seu contador.
Adeus Sr. Jacob.”.
“Muito obrigado, Dr.
Francisco! Muuuito obrigado!!! O senhor é muito bom. Deus o Abençoe.”
O Dr. Francisco vai em
direção à porta da loja.
Correndo para a porta atrás
do fiscal: “Dr. Francisco, Dr. Francisco!”
O Dr. Francisco virando com
surpresa: “Sim, Sr. Jacob?”.
“Quando chegar Natal, o
senhor passa aqui que eu dou presente para sua esposa e para sua filha. Ta
bom?”
O Dr. Francisco abre um
sorriso e diz: “Não precisa, Sr. Jacob, mas muito obrigado assim mesmo. Adeus”.
“Deus que o conserve, Dr.
Francisco”. (looonge de mim!).
Mais um Khaper (fiscal) superado. Graças a Deus!Deus
me ajude nunca mais ver um novamente até o resto da minha vida!!! Amem! Mas, se
precisar, vamos começar tudo de novo! Oi vei.
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